CRIAR O (IM)POSSÍVEL
- jupautilla
- 8 de jul.
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Gabriela Kostesky[1] nasceu e viveu em Montevidéu onde se formou artista, participando intensamente dos ateliês de formação em artes visuais, muito comuns na capital uruguaia. Em 2021, aos 50 anos, se muda para o Brasil passando por Porto Alegre, Rio de Janeiro, Praia Grande e estabelece morada em São Paulo, capital. Seu trabalho, que sempre apresentou a proposta de discutir a imigração e suas cartografias, o feminino e os direitos humanos - a artista é formada em direito trabalhando intensamente na área social - toma uma proporção ativista se pensarmos que agora ela mesma se torna um corpo em trânsito, migrante. Proponho olhar para as assemblages e colagens de Gabriela pela poética política que seu trabalho enseja. Pensar através da descentralização do corpo e dos territórios geopolíticos fixados. Seus trabalhos, brincando com as delimitações dos mapas, evocam a ideia de fronteira como pensa Anzaldua, locus de enunciação possível para uma existência. Viver na/pela fronteira é desterritorializar a lógica geopolítica colonial. Em Anzaldua a fronteira é o rompimento da noção de estado nação, de nacionalidade, de uma única identidade coletiva. A fronteira revela a alteridade em sua radicalidade, não o sujeito da oposição, mas o de um amassamiento, como diz a autora. Também Gabriela habita uma existência de fronteira: tanto seu corpo, como o tema e as materialidades que lança mão.
Desenhos de linhas contínuas e descontínuas, cordões, fios, carimbos postais e de imigração. Os corpos parecem remendados ou fantasmáticos, existências figurais, intensas, potenciais de construções contínuas, movimento. Corpos de remendos, acumulados de cultura, de línguas, de pedaços de materiais que são catados, recortados, rasgados, colados, sobrepostos, costurados. Como uma andarilha que coleciona vestígios de viagem, os materiais cotidianos e baratos vão sendo (in)corporados para que um espaço possível de vida seja criado, sem a necessidade de defender uma autenticidade identitária essencial. Não é uma ideia de restauração de uma possível paz cultural, mas de uma fricção entre corpos/materiais com as asperezas que os encontros produzem.
Rasgar, cortar, marcar, delimitar, apropriar de materiais usados, colar e sobrepor camadas de diversas técnicas como desenho, marcação e pintura, suportes com materiais descartados como placa de MDF e papelão - nos remete ao profundo e tortuoso processo de adaptação do corpo a novos territórios, seja no processo de emigrar-imigrar, seja nos processos de extrema violência que as situações de guerra promovem. Os processos de subjetivação nessas situações limites aparecem fortemente nas obras, através dos gestos poéticos mencionados. Os materiais indicam a possibilidade de criar em qualquer circunstância, com o que é possível fazer, como uma escolha formal e ética.
“Forasteiro l” é uma assemblage, parte da série Fronteiras, em que a artista explora a figura de um corpo sulcado na terra, ultrapassando as marcas cartográficas ou ele mesmo é marca cartográfica. O corpo escuro se funde à terra e um território demarcado, de marrom-avermelhado. O carimbo é também marca cartográfica. Uma linha laranja, de sul-norte ou norte-sul, atravessa a imagem, como um rio em alto relevo, que não pede licença e segue seu curso.
Em “migrantes e emigrantes”, a cor predominante é o vermelho. Tela composta por silhuetas fantasmáticas de corpos que permeiam, ao fundo e ao redor do rosto de uma mulher ao centro. Desenhos de fios emaranhados em seu rosto, como pensamentos e caminhos tortuosos. Fios verdes atravessam a obra na vertical, como cordas de salvação de um estado mental e emocional transitório. A obra nos convida ao mundo interno de figura central, seus incômodos e desafios, e sua fragilidade em habitar novos territórios. As pequenas figuras laterais, que saltam da tela, geram uma sensação de distância e afastamento, o que remete à sensação de isolamento.
Em “mulher e guerra”, a sobreposição de papeis compõem a obra: folhas brancas rasgadas coladas em um papelão de produto descartado, acetato transparente, página de um livro usado. Pinceladas que remetem a manchas, numa situação em que, como o sangue, a vida escorre nos campos de batalha. Os desenhos em nanquim, delicados, nos apresenta as personagens e suas humanidades, tentando ainda viver na hostilidade da guerra. Um fio amarelo, na extensão da obra, é finalizado com um palito de fósforos usado e pagado anuncia: cessar fogo!
[1]Gabriela Kostesky (1970). Vive e trabalha em São Paulo. Artista visual, professora e pesquisadora uruguaia. Residente no Brasil desde 2021. Formada no Uruguai nos principais ateliês de criação em Artes Visuais de Montevideo. Pesquisa principalmente colagem, pintura, desenho, escultura, instalação e assemblage. Já realizou diversas exposições individuais e coletivas no Uruguai, Venezuela e Brasil. Sendo as principais mais recentes ”Nomades Bikost” na Casa da Cultura Mário Quintana (Porto Alegre, 2021) ; “Fora da Margem” no Centro Histórico-Cultural Antônio Klinger Filho Galeria de Arte (Porto Alegre, 2022); “Falo de Erotismo“ no Vórtice Cultural - Edifício Vera (São Paulo, 2024); “Homoerótica”, Reset Gallery (Caracas, 2025).